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Já pensou em fazer alguma coisa para mudar o mundo? E o país? A cidade? Sua rua? Se você acha que atuação política é um bicho-de-sete-ca­beças... vai mudar de idéia
Texto: Dilson Branco e Michelle Roxo // Ilustração: Heitor Yida
 

Tudo começou com a realização de um sonho. Era a década de 80 e o marceneiro Ailton Alves da Silva deixava o aluguel num bairro de classe média rumo à casa própria. O endereço novo era o Parque Rondon, na periferia de São Paulo. Era um momento alegre. Mas, mais do que depressa, a expressão “desigualdade social” deixou de ser um jargão abstrato para se materializar na paisagem que entrava pela porta da frente. No novo bairro, as ruas eram de terra, a água vinha do poço, as crianças brincavam ao redor do esgoto que corria a céu aberto. Poucos moradores se arriscavam a andar pelas ruas, sem postes, depois que anoitecia. Não havia hospital, escola de ensino médio, correio nem farmácia. Tamanho era o desamparo que Ailton se deu conta de que esperar pelo governo seria inútil. Ele tinha de fazer alguma coisa. Virou líder comunitário.

Na mesma década de 80, em Campinas, Silvia Corbucci ainda tinha preo­cupações mais singelas. Na casa que dividia com a família, ficava atenta para não deixar a torneira aberta nem a luz acesa à toa – se não tomava bronca. “Meu pai não deixava a gente brincar com água. E dizia pra gente escolher o que ia pegar na geladeira antes de abrir”, conta. Tão logo a coleta seletiva de lixo chegou ao bairro, virou rotina básica da família separar os recicláveis. E, no ano 2002, Silvia, como Ailton, também se mudou: veio para São Paulo fazer faculdade. Logo chamou atenção o que não estava certo: em seu prédio, no bairro do Butantã, não havia coleta de recicláveis. Ela tinha de fazer alguma coisa. Passou a mão no telefone e foi resolver o assunto.

Alguma vez você já teve vontade de agir para resolver aquele probleminha ou problemão que o incomodava, mas que não era só seu, e sim de todo mundo? Se sim, você entende o que leva alguém a querer participar mais dos rumos de sua comunidade – e do bairro, da cidade, do país... Para os cientistras sociais, você sabe o que é ser um cidadão. “Cidadania é um exercício ativo. Não é só receber as coisas: é intervir na sociedade, é participar”, diz Inácio da Silva, pesquisador e educador da Escola de Cidadania do Pólis – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais. “Nós somos chamados a ser felizes, a viver integralmente nossa vida, e para tanto é preciso exigir que os direitos sociais, em todas as dimensões, sejam efetivados e respeitados”, acrescenta ele.

Muito bem. Mas como fazer isso? De quem cobrar soluções? Ah, você mal teria tempo de ser síndico... Bem, primeiro você não precisa, nem deve, agir sozinho. Ailton começou procurando a igreja do bairro. Lá, conseguiu se reunir com os vizinhos para discutir o que mais incomodava e que soluções eles poderiam apontar. Vinte anos depois, fazendo abaixo-assinados, reivindicando na subprefeitura, entrando com denúncias no Ministério Público e angariando ajuda de outras instituições, conseguiram regularizar os terrenos do bairro e ver a água encanada, a eletricidade, o sistema de esgoto, o asfalto e um CEU (Centro Educacional Unificado) chegar à região.

Vale também se livrar do preconceito de que todas as ações políticas são bicho-de-sete-cabeças, que exigem muito tempo e conhecimento. Silvia, por exemplo, ligou para a prefeitura, depois para uma dessas empresas que fazem a coleta de recicláveis e levam a cooperativas de separação de lixo, e, em uma semana, o caminhão passava na porta do prédio. Ela também fez, no computador, um folheto em que explicava o que era lixo orgânico e reciclável. “Daí imprimi cópias e deixei com o porteiro para que ele distribuísse aos moradores”, explica. Nada complicado, certo?

Hoje, Ailton é presidente do Instituto de Cidadania Padre Josimo Tavares – uma ONG criada em 2003 que é espaço de educação e mobilização para as lutas do bairro. É um voluntário. Segue com a profissão de marceneiro, dividindo seu tempo com as oficinas de educação cidadã, os debates comunitários e as reuniões como as do movimento Creche para Todos. Silvia não mora mais naquele prédio, mas sabe que a reciclagem continua. E, na nova casa, construiu uma composteira para lixo orgânico, anda sempre a pé e de bicicleta e planta no quintal as hortaliças que consome. “Minhas ações são mais individuais, mas acho que tenho de fazer com que os meus atos contribuam para um bem em que eu acredite”, diz.

Os caminhos deles são só dois dos possíveis. Quem quer se engajar para mudar alguma coisa com relação à cultura, à saúde, à educação ou à segurança pode entrar para associações de bairro, movimentos populares, fóruns, conselhos gestores de políticas públicas (entenda o que são e como funcionam no quadro da pág. 20) ou, por que não, fazer um site, um fanzine com os amigos, uma passeata na rua para divulgar as suas idéias e chamar quem pensa como você.

A Constituição e o mural

Hoje, mobilizar-se para mudar alguma coisa é trabalhar com a idéia de que a democracia não se limita só a seu papel de eleitor que vota e delega funções aos candidatos. Democracia também é participar e fiscalizar o poder público. E para que essa participação aconteça já existem garantias legais. Por exemplo, na Constituição de 1988.

Símbolo do fim da ditadura militar, ela é também conhecida como Constituição Cidadã, justamente porque criou instrumentos para que a população possa participar mais dos rumos da política. Como? Através dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas, por exemplo. São grupos de representantes populares e dos governos que se encontram periodicamente em reuniões abertas a qualquer pessoa. Eles propõem, discutem e fiscalizam ações para a educação, a saúde, o meio ambiente, cada um na sua área.

Os conselhos não são muito diferentes da reunião do seu condomínio ou da de pais e mestres na escola. A diferença é que eles são um canal direto com o governo. Basicamente, dão-se os problemas, dão-se as regras, e as pessoas estão ali pra discutir se elas bastam para resolver os problemas, se é preciso fazer novas regras ou se essas não estão funcionando porque ninguém fiscaliza ou porque o dinheiro para aplicá-las desapareceu.

“Somos chamados a ser felizes, a viver integralmente
nossa vida, e para isso é preciso exigir que os direitos

sociais sejam efetivados e respeitados”
Se acompanhar a reunião de um conselho gestor não é a sua praia, você pode juntar gente pra trocar idéias sobre o problema anunciando uma reunião no mural da igreja, no elevador do prédio, no corredor da escola. Pode discutir soluções em conjunto e fazer um abaixo-assinado para seu vereador ou deputado. Ou escrever uma carta ao Ministério Público denunciando uma situação de dano coletivo, que pode até virar uma ação na Justiça.

A justiça

É possível que parte do desânimo na hora de se engajar venha da noção de que a justiça tarda, falha e ainda fica a milhas de distância dos cidadãos. Não é bem assim. Uma instituição que é parceira de suas reivindicações é o Ministério Público (MP). “O MP é um órgão de defesa da sociedade”, ressalta Silvio Marques, promotor de Justiça da Cidadania do Ministério Público de São Paulo. “Qualquer cidadão pode solicitar que o MP inicie uma investigação sobre danos ao meio ambiente, problemas de transporte, questões da infância e juventude...”.

Como isso funciona? Primeiro chega às mãos do promotor uma denúncia (também chamada de representação), que pode ser uma carta simples, escrita por você mesmo, em que conta como é que o rio que passa pelo bairro está sendo contaminado pelo esgoto de tal fábrica. Ou algo do tipo. Você se identifica, coloca data, endereço e assinatura e manda ao MP pelo correio ou escreve tudo pela internet (veja mais em http://www.infojus.gov.br/). Com essa denúncia em mãos, o promotor vai instaurar um inquérito e iniciar a investigação, que, claro, pode durar meses ou anos. Se chegar a conclusões convincentes, o promotor propõe uma Ação Civil Pública ou Denúncia de Ação Penal dirigida a um juiz, contra a empresa ou o órgão público que causou o dano.

A Ação Civil Pública é um instrumento-chave para levar à Justiça reivindicações coletivas – questões individuais não são resolvidas aqui. Pode servir pra fazer o governo construir uma escola ou hospital num bairro, por exemplo. Silvio Marques, o promotor, lembra de um caso em que moradores de uma comunidade de São Paulo se sentiram prejudicados porque o serviço de coleta de lixo não estava sendo feito, e quilos de detritos se acumulavam nas ruas. “Eles entraram com uma representação acionando o MP, que deu origem a uma ação. A empresa foi multada e condenada a pagar 93 milhões de reais à prefeitura”, conta.

Inspire-se

No processo de engajamento social, cada pessoa se sente “chamada” de um jeito diferente, em razão de seus interesses, de sua história de vida ou da realidade de sua comunidade. Por exemplo, o padre Jaime Crowe, conhecido líder comunitário do Jardim Ângela, bairro da periferia de São Paulo que já foi considerado pela ONU o mais violento do mundo. Jaime, irlandês, chegou à paróquia e não pôde deixar de se sensibilizar com o alto número de homicídios e os graves problemas sociais visíveis por toda parte. Desde 1996, ele está a frente do Fórum em Defesa da Vida, movimento que reúne cerca de 50 entidades locais. “Vivia enterrando vítimas de violência e consolando as famílias. Entendi que não basta chorar: é preciso buscar soluções comunitárias para os problemas”, diz.

Ailton, nosso líder no Parque Rondon, parece ter pensado o mesmo. Silvia, que não se considera politicamente atuante, já que age individualmente em prol do que acredita, acha que, primeiro, se deve arrumar a cama e depois o quarto para conseguir arrumar a casa inteira. “Se cada um arrumar sua cama, talvez a gente tenha uma cidade arrumada”, diz. De qualquer um dos lados que você esteja, é possível começar a se mexer para mudar.
Dicionário de mobilização
Entenda o que são alguns dos principais espaços de atuação política da sociedade
Associações de bairro
Organizações de moradores que se reúnem para lutar pela melhoria da qualidade de vida da comunidade. Consulte a Confederação Nacional das Associações de Moradores: http://www.conam.org.br/

Conselhos gestores de políticas públicas

São espaços em que a sociedade participa da elaboração e da gestão de políticas públicas junto a governos municipais, estaduais e federais. Consulte o site de sua prefeitura para se informar mais.

Fóruns
Reúnem várias entidades, organizações e movimentos para debate de idéias e de ações concretas sobre um tema. O Fórum Social Mundial é o mais famoso: http://www.forumsocialmundial.org.br/.

Movimentos sociais

Reúnem pessoas e entidades em torno da luta por bandeiras mais amplas: feministas, operários, indígenas, estudantes etc. São mais conhecidos por promover passeatas, atos públicos e ocupações.

Organizações não-governamentais (ONGs)
Entidades sem fins lucrativos, que normalmente atuam na defesa de direitos em várias áreas. Consulte o site da Associação Brasileira das ONGs: http://www.abong.org.br/.
 

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