Daniel Piza

Folheio um livro que minha filha de 9 anos pediu para comprar, indicado por uma coleguinha, Monster High, de Lili Harrison (sim, título em inglês, editora brasileira ID), e me espanto com o número de grifes citado por página. É uma história de meninas numa cidade que estaria sendo ocupada por monstros, algo assim. Quando um carro passa em velocidade, não é isso que lemos, mas que "um utilitário esportivo verde, BMW, passou em velocidade". Se um menino monta barraca no acampamento, somos informados de que se trata de "uma barraca cáqui da Giga Tent". Se uma bolsa é apoiada, ficamos sabendo que ela também é verde, afinal a dona leu que "o verde é o novo preto" em alguma matéria ou anúncio (quando, obviamente, se pode distinguir uma do outro nas revistas). Celebridades como Shakira, Beyoncé e Feist são enumeradas. Um figurino pode ser "punk-gracinha"; um móvel, "Calvin Klein cor de berinjela"; a echarpe, "cor de fúcsia". Celulares tocam e posts tuítam o tempo todo, qualquer pessoa com mais de 30 é "velha" e a protagonista, uma adolescente que se chama Melody e fez cirurgia plástica no nariz.

Mas pulo para o final do livro e Melody diz a um amigo que "quando temos aparência diferente e as pessoas gostam de nós do mesmo jeito, sabemos que é pelos motivos certos" - ou seja, não por serem bonitas ou estilosas, prontas para "roubar o namorado delas". Depois de 380 páginas, portanto, eis a lição: "Quero que as pessoas parem de ter tanto medo das diferenças umas das outras". Bem, isso é no mínimo desonesto: se os gostos não dependem das aparências, por que insuflar de tal modo o frenesi consumista dos leitores mirins? Não é muito diferente de um seriado de TV como Pretty Little Liars, que interessa às espectadoras muito menos pelas questões existenciais do que pelos figurinos e penteados que as bonitinhas desfilam. Na escola da minha filha, há alunas que comemoram o aniversário ganhando dos pais um passeio de limusine e que não têm uma ou duas bonecas de determinada marca americana, mas 17 delas, e ainda organizam festas exclusivas para as coleguinhas que tenham a tal boneca.

O mundo da publicidade e da moda vive de alimentar esse consumismo, claro, e não por acaso ele é dirigido cada vez mais ao mundo infanto-juvenil, apostando em crianças mimadas que vão pressionar os pais a ter o que as outras têm, o que significa que dão pouco valor ao que já têm. Também não é por acaso que adultos se comportam cada vez mais como adolescentes tardios, como garotos de bermuda que não levam a vida a sério e mal sabem articular frases banais. E para eles os estilistas criam, ou melhor, copiam camisetas com estampas de araras ou coisas do gênero; vi outro dia na TV, por sinal, um deles usando uma camiseta com desenhos que imitam aquelas infames roupas de marinheiro que antigamente os pais impunham a crianças que não tinham poder de escolha... Será que, de tanto serem tratados com propagandas "Custa apenas R$ 99,99" (nunca dizem "cem"), os cidadãos se acostumaram a ser enganados? Isso explica também a cultura do Photoshop, que transforma celebridades em deusas de cera.

Essa infantilização do consumo tem muitas consequências visíveis em nosso tempo, como a ansiedade, que faz as pessoas cada vez buscarem mais muletas emocionais para a tal autoestima (de pílulas a plásticas, de vícios a fobias, de superstições a religiões), inclusive depositando grande expectativa em relacionamentos mais virtuais que reais. Há também o que já chamei de patrulha das aparências, em que uma pessoa exibir barriguinha ou ruga é algo condenado com sarros ou olhares, levando especialmente as mulheres a injeções e aspirações que só as deixam piores, para não falar das roupas de perua ou anacrônicas. Talvez mais sério ainda, cria uma exigência financeira que apenas uma minoria pode bancar; a maioria fica devendo ao banco mesmo, comprando objetos e carros em parcelas absurdas. Por fim, o convívio inteligente é afetado, aquele que pede cultura, maturidade, simplicidade e senso de ironia. Como as grifes, as opiniões são iguais, compradas na mesma gôndola mental.

Rodapé
Nada mais distante desse mundo do que o gênio de Robert Walser (1878-1956) [foto acima], o escritor preferido de Kafka, de quem sai no Brasil pela primeira vez o romance Jakob von Gunten (Companhia das Letras, tradução de Sergio Tellaroli). É de 1909! Dele só existe disponível em edição nacional O Ajudante (Arx) e nada daquilo que melhor fazia, a prosa breve, como nos Microescritos, que descobri por causa de Walter Benjamin. A vida de Walser daria uma de suas histórias. Internado em clínica psiquiátrica de 1929 em diante, viveu anônimo e foi encontrado morto em cima da neve.

Tenho o hábito feio de dobrar a ponta das páginas de um livro enquanto o leio, para marcar passagens preferidas, até mesmo para citar em meus comentários depois. Lendo Jakob Von Gunten, que é um diário de um garoto numa escola alemã, de repente me dei conta de que tinha dobrado quase todas as páginas. Marquei passagens como a da página 75:
"Quando as pessoas alcançam sucesso e reconhecimento, notamos de imediato, porque, fartas de satisfação consigo mesmas, elas se tornam quase gordas, e a força das vaidades as incha feito balões, deixando-as irreconhecíveis. Que Deus proteja um homem do reconhecimento das multidões. Quando não o arruína, ele só faz confundi-lo e drenar suas forças". 

Gainsbourg que o diga.

A escola se chama Instituto Benjamenta e serve para amestrar meninos que serão criados da classe alta, ou seja, serve para que saibam ser servis. Curiosidade e contestação, portanto, são defeitos morais. "Nossos olhos dirigem-se constantemente para um vazio prenhe de reflexão, o que também constitui exigência do regulamento. Na verdade, não deveríamos ter olhos, porque olhos são insolentes e curiosos, e insolência e curiosidade são dignas de reprovação, se examinadas por quase todos os pontos de vista saudáveis." Não é difícil ver por onde se deu a influência sobre Kafka.

A educação preza pelo que chama de humildade, ou seja, a ausência de pensamento independente ("Pensar é resistir", diz o narrador); o trabalho dos pedagogos é apequenar os futuros adultos: "Eu, de minha parte, serei algo bem inferior e pequeno. A sensação que me diz que assim será é tão completa e inabalável como um fato consumado. Deus meu, e ainda assim tenho toda esta coragem de seguir vivendo? Que há comigo? Muitas vezes, sinto certo medo de mim, mas não por muito tempo. Não, não, confio em mim. Mas não é isso verdadeiramente cômico?".

Pode-se dizer que essa ironia amarga tem a ver com a época, com aquela antessala fúnebre da Primeira Guerra, mas Walser tem muito a dizer sobre o mundo atual, como dizem os clássicos. Ao descrever a multidão caminhando pelas ruas da cidade, fervilhando em sua diversidade aparente, Jakob comenta:

"Todos buscam, todos anseiam por riquezas e bens fabulosos. As pessoas têm pressa. Não, elas se contêm, mas a pressa, o anseio, a aflição e o desassossego rebrilham, cintilantes, nos olhos ávidos. (...) E as pessoas olham tão perdidas"

Grandes escritores não dizem o que gostamos de ouvir.
[...]

Fonte: O Estado de S. Paulo - Caderno2 - Internet: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110717/not_imp745903,0.php

2 Deixe aqui seu comentário:

Penélope disse...

Menina, suas páginas têm conteúdos muito interessantes.
Vale a pena passar por elas.
Grata! Adorei passar por aqui.
Abraços

Marcela disse...

Kátia! ESPETACULAR a reportagem...não tinha conhecimento do livro e nem da crítica. Meu Deus! onde vamos parar minha amiga??? A diferença do apelo ao consumismo que enfrentei com meu filho de 22 anos é completamente diferente do que enfrento com a minha de 7!!! as pessoas estão perdendo o sentido das coisas - ser virou ter...e cada vez menos já referenciais para esses adolescentes que crescem emburrecidos e seguindo uma manada cada vez mais perdida. Só Deus mesmo! Bjos querida!